18.4.06

Entrevista ao novo Reitor da Universidade de Lisboa

Público, 18 Abril
Isabel Leiria

"O nosso drama é que por cada 100 alunos que entram são diplomados 30 e tal"

O reitor da Universidade de Lisboa acredita que o nível médio dos licenciados portugueses é aceitável, quando comparado com o dos europeus. O problema são as elevadas taxas de abandono. Os alunos têm de ser acompanhados nos primeiros anos e devem seguir percursos diferentes.

Aos 51 anos, depois de ter passado por algumas das mais prestigiadas universidades norte-americanas e europeias, António Nóvoa, pedagogo, historiador da Educação e catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação foi eleito na passada semana reitor da Universidade de Lisboa (UL). Diz que os alunos mudaram e que as instituições têm de repensar a sua missão.
PÚBLICO - A universidade de hoje é muito diferente da que frequentou há 30 anos?
ANTÓNIO NÓVOA - É totalmente diferente. Aliás, um dos problemas que temos prende-se com o facto de a universidade estar concebida para receber três a cinco por cento de uma determinada classe de idade e hoje haver quase 50 por cento dos jovens no superior. Grande parte dos desajustamentos actuais tem a ver com esse aumento, que é muito positivo, mas que traz um conjunto de problemas. A universidade não se reorganizou no sentido de perceber que tem hoje uma missão diferente daquela que tinha há 30 anos.
Para além de serem mais, são diferentes?
É frequente ouvir-se dizer que chegam à universidade sem saber pensar, por vezes escrever. É o que escrevo no livro Evidentemente: tudo isso é evidente, mas é uma evidência que mente um pouco. Quando preparei o programa de candidatura, estive a ler as orações de sapiência e os discursos de abertura do ano académico da UL. A primeira oração, em 1911, é exactamente em torno desse tema. Dizia que a situação era um desastre, que era impossível dar um ensino universitário de qualidade, quando os jovens vinham do liceu daquela maneira. Não me interessa essa espécie de passa-culpas permanente. Se perguntar: a universidade tem trabalhado com os alunos da melhor forma possível em função da maneira como chegam à universidade? A minha resposta é não.
Mas qual é avaliação que faz dos alunos?
O nível médio dos nosso diplomados é razoavelmente aceitável em comparação com os níveis médios europeus. Dei aulas em Nova Iorque, Winsconsin (EUA), Genebra, Paris, e sei que não é inferior. O nosso drama é que por cada 100 alunos que entram no 1.º ano são diplomados 30 e tal, no máximo 40.Porquê?Porque não temos estruturas de orientação, porque tratamos todos os alunos da mesma maneira, como se tivessem de fazer todos os mesmos percursos. O desperdício acontece aí.
Qual é a solução?
Temos sido completamente insensíveis a esta realidade do abandono escolar no superior. Uma das minhas medidas vai ser criar um observatório dos percursos estudantis, em que se conheça claramente o que acontece aos alunos desde o dia em que entram na UL. Há 30 anos, todos pediam mais ou menos a mesma coisa. Hoje existem necessidades e exigências diferentes, às quais temos de dar resposta. O que é muito poderoso nas universidades dos EUA, em Oxford, são sobretudo os dois primeiros anos de adaptação, os colleges, em que há orientação dos estudantes, compreensão do que podem a vir ser os seus percursos, integração na vida universitária.
Com 19 anos não se devia ter essa maturidade?
O facto de toda essa aprendizagem dever ter sido feita no secundário - escrever bem, ler criticamente, consultar bibliografia - não substitui a necessidade de também ser feita na universidade. Quando, no quadro de Bolonha [para um espaço europeu de ensino superior], falamos na flexibilidade curricular acho que é aí que podemos ganhar este desafio: conceber uma universidade que dê resposta a um número cada vez mais alargado de alunos (inclusive adultos), mantendo-a fortemente competitiva no plano da investigação e pós-graduações. Só conseguimos fazer isto, se dissermos que os estudantes não vão todos fazer a mesma coisa: uns vão ficar com formações mais profissionalizantes, outros serão projectados para segundos ciclos de estudo, doutoramentos, investigação.

"Teia de protecções jurídicas" impede mobilidade docente

O que gostaria de ver mudar na Universidade de Lisboa (UL) no seu mandato?
A refundação institucional da UL é uma das prioridades. Herdo uma universidade com oito faculdades e um instituto e gostaria de deixar uma com 12 faculdades e escolas politécnicas, três ou quatro institutos, escolas doutorais transversais. Gostava também de uma universidade mais consolidada na investigação e a terceira prioridade é Bolonha e a reforma dos estudos, o que passa pela abertura ao exterior e a novos públicos.
Ensino politécnico na UL vai contra a tese de que deve haver uma separação entre este subsistema e o universitário?
Na realidade do nosso país, essa diferenciação é necessária - há formações que devem ser de cariz universitário e outras politécnico -, mas deve coexistir dentro do mesmo espaço institucional. Não há nenhum sistema de ensino superior em parte alguma do mundo que tenha o número de instituições que nós temos. A minha aposta é garantir uma rede de associações que nos dê a massa crítica que permita competir no espaço europeu de ensino superior. Isto é uma mudança brutal no que foi durante muito tempo a concepção de uma universidade clássica.
Cortar no financiamento dos cursos com menos de 20 alunos ajudará a regular o sistema?
Sim, se a medida não for tomada de forma cega. A esmagadora maioria desses cursos foram criados por lógicas de oportunidade, de mercado e de professores, que criaram esses pequenos feudos. Mas há áreas fundamentais que eu, como reitor da UL, não posso fechar nem que não tenha um aluno.
A falta de mobilidade dos docentes é outro dos problemas?
Fala-se muito das estruturas de governo das universidades mas, para mim, o principal drama é esse. A estrutura legislativa que temos impede a mobilidade. Se um assistente contratado aos 23 anos quiser ficar na instituição, muito provavelmente fica lá até aos 70. A teia de protecções jurídicas torna quase impossível pôr esta pessoa fora da universidade, o que é um absurdo. Fiz a minha formação em universidade estrangeiras, fui professor lá fora e não me imagino a terminar a minha vida na UL. Nesse sentido vivo mal com as endogamias que existem. Mas é preciso referir outra coisa: ao mesmo tempo que a legislação protege muito as pessoas que estão dentro da instituição, desprotege-as completamente no momento em que não lhes é renovado o contrato. A alternativa é o puro desemprego e sem sequer direito ao subsídio.
Acha que o Estado intervém demais na vida da universidade?
Há dois aspectos que são profundamente perturbadores. Um tem a ver com o que chamo de microdecisões, que tornam o governo da universidade num inferno. Um dia é a retenção dos saldos das instituições, agora são as cativações das receitas, amanhã é uma auditoria, depois outra, que diz que a gestão contabilística tem de ser feita de outra maneira...
E o segundo aspecto?
Tem a ver com o excesso de recursos, contenciosos jurídicos, administrativos e conflitos que se manifestam nos concursos e que bloqueiam permanentemente as instituições. Não há nenhum concurso para professor associado, catedrático ou outra coisa qualquer que não dê origem a intermináveis recursos. Faça-se o que se fizer. É preciso retirar esta lógica administrativa e jurídica.Porquê tanta contestação?Porque há um estrangulamento das carreiras e uma grande competição por certos lugares, onde entendo que se devia chegar por mérito - produtividade científica, publicação de artigos - e não por uma lógica de quadros. O que existe é uma lógica de pirâmide que é muito medíocre neste sentido.

"É inacreditável que ainda se esteja a discutir a avaliação dos professores"

A ausência de mecanismos de avaliação dos professores não contribuirá para as elevadas taxas de insucesso?
Não se pode falar em total ausência. Algumas faculdades de Lisboa têm essa prática, mas é ainda incipiente. Só que esta questão já devia estar resolvida há 20 ou 30 anos. É inacreditável que, em 2006, estejamos ainda a discuti-la em Portugal. É um dos aspectos que vão ser mais importantes no meu mandato. Vamos criar uma estrutura interna de avaliação da universidade, com diferentes componentes: avaliação dos cursos, da instituição e dos professores.
Os alunos seriam à partida quem estaria em melhores condições para fazer essa avaliação. Por outro lado, podem não ser os mais objectivos...
Esse é o argumento principal para não haver avaliação pedagógica. Os alunos têm más nota, logo vingam-se nos professores. É absurdo, porque passa aos alunos um atestado de insensatez que não faz sentido. Além disso, todas as universidades do mundo têm práticas estabilizadas de avaliação dos professores pelos alunos e esse fenómeno nunca se notou, a não ser de forma residual. Agora, é apenas mais um critério a juntar à produção científica, à participação na vida universitária, capacidade de organizar sumários. Quando cheguei a Portugal e dei aulas pela primeira vez na UL, em 1987, no final da cadeira fui à secretaria pedir a minha avaliação pelos estudantes. Para mim era uma coisa corriqueira e da minha rotina de professor. As pessoas ficaram a olhar para mim...

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